“Finalmente mais uma guerra cheia de mentiras acabou...”, são essas as palavras iniciais da apresentação desse livro de capa impactante, cujo nome pode soar como uma blasfêmia aos ouvidos dos mais puritanos. Não sem razão, Elenilson Nascimento, seu autor, expõe inicialmente um destemido e consciente discurso sobre os principais problemas da atualidade, enfatizando as dificuldades de se escrever em um país onde a educação cada vez mais entregue a interesses políticos reproduz crescentemente legiões e mais legiões de seguidores de uma cultura pasteurizada e superficial. Assim, nessa sua proposta de elucidação das verdades não ditas, o escritor remonta-se ao axioma nietzscheziano do aniquilamento das crenças divinas para reportar-se a inoperância de Deus face às barbaridades do mundo.
Dessa maneira, a despeito do título, que de imediato pode está associado a uma coletânea de obscenidade emitidas por um ateu convicto, o autor baiano expõe, ainda na Apresentação da obra, um intrigante diálogo com Deus, a quem lhe atribuiu, a missão de desvelar as faces ocultas da raça humana, por meio do que denomina ser a escrita de “verve maldita”.
Assim como a belíssima ilustração da capa do livro, Elenilson mantém-se como uma espécie de anjo caído, de olhos vendados para os Jardins do Éden, recriando a beleza perdida por meio do lirismo de suas palavras, distancia-se do mito da perfeição divina, aproximando-se, com isso, cada vez mais do universo dos homens. E são muitas as alusões aos atos de um Deus “impiedoso” e “cruel”, tão qual é retratado nas construções do Antigo Testamento, no cerne da constatação de que os homens foram jogados no mundo entregues a sua própria sorte e estão suscetíveis a toda espécie de vilania e discriminação.
MATRIX – Talvez seja um pouco lunático mais extremante plausível estabelecer um elo de ligação entre esse jovem escritor com o herói cibernético Neo, do filme “Matrix”, visualizando-o como uma aberração ou vírus que assola o programa mestre que gerencia nossa realidade e nos conduz aos ditames do senso comum. Como um recém liberto das amarras da caverna nossa de interesses e alienação cotidiano, que tem acesso instantâneo ao universo das verdades ocultas e ainda um pouco tonto com tanta informação, Elenilson passa, dessa forma, sua mensagem de forma bombástica e incendiária.
Muito além do fiel retrato da realidade doentia que cerca os domínios de nossas visões de mundo, propõe-se a libertação de todos os prisioneiros que se encontram acorrentados à escuridão das cavernas, dos templos, dos edifícios, dos lares e da própria sorte. E esse subliminar conclame de emancipação da mente humana ocorre de maneira sutil, irônica e inteligente através de uma linguagem metafórica, subjetiva, através do qual aborda uma temática que pode beirar o absurdo realista para os desatentos, ou simplesmente o realismo sensato para uns poucos que corroboram com a interpretação caótica do mundo.
Interpõe-se, em sua narrativa, alusões aos problemas sociais, a crise educacional, a pedofilia, a corrupção, as traições, as infidelidades amorosas e de outros elementos oculto sob a moral de conveniência dos tempos presentes. E nessa perspectiva, vilões surgem na deterioração dos valores, como representantes natos da amoralidade dessa era, como no caso do pedófilo do conto “O aliciador de Melissas”, representante nato da amoralidade dessa era, enquanto os mocinhos umedecem as nossas vistas secas, sinalizando com esperança a possibilidade de vitória dos excluídos, a exemplo do personagem do conto “O vendedor de picolé que amava Capitu”.Ressoam-se, dessa maneira, os ecos da voz desse “herege compulsivo”, a quem não cabe a denominação do sentido literal da palavra, mas com toda certeza uma abstração alegórica inserida na percepção dos que descortinaram os véus da realidade e permanece assim junto a ela como um observador atento. E, por essas razões, as palavras de Elenilson Nascimento expressam-se aos leitores, como uma espécie de monólogo interativo, onde personagens angustiados e esquizofrênicos ganham vida, subsistindo em universos isolados, não como uma estratégia de fuga, mas sim como um recurso de sobrevivência em mundo caótico por natureza.
Por mais contraditório que possa parecer essa mesma realidade padronizada, por mero decreto, cria e abriga toda uma diversidade de anomalias e deserções que nada mais reflete do que o espelho imperfeito de uma sociedade doentia e disforme. Dentro dessa visão, surge a figura do Sir. João Grandão do conto introdutório do livro, “Todo mundo amplia a paranóia que cria”, um comentarista famoso de televisão que profere seu discurso sensacionalista carregado de colocações antiéticas bem aos moldes da típica programação midiática líder de audiência.
Esse personagem, em especial, que vive em um universo de excentricidades, egocentrismos e pretensões de toda sorte, construído engenhosamente por sua personalidade metódica e neurótica para ocultar as frustrações de uma carreira artística mal sucedida, possui ainda devaneios alucinógenos, autodenominando-se como crítico de arte. Contudo, como tudo nesse homem é verdadeiramente falso e efêmero, Sir. João Grandão, ex-adepto da teoria revolucionária de Stiglitz de combate à globalização dos mercados e admirador da irreverência de Tom Zé, assisti a sua própria degradação às voltas com críticas moralistas por conta de mais uma de suas declarações bombásticas e o ressurgimento de um câncer.
Se esse homem é apenas mais uma aberração atípica desse mundo, obra do acaso ou do destino previamente traçado, não se sabe. Essa é uma reflexão que pode surgir após a leitura desse conto. Em seu estilo provocativo, carregando de abstrações metafóricas e analogias, Elenilson intervém na narrativa com algumas considerações interessantes acerca da caracterização do personagem, bastantes elucidativas. De qualquer forma, não é difícil encontrar tipos semelhantes ao Sir. João Grandão por aí, produzidos e ejetados pela paranoia do sistema social em que vivemos.
É assim, como o mundo padronizado carrega consigo o dom nato da auto contradição, eis que surge um outro personagem, desses lunáticos e enigmáticos, no conto “O homem que se espremia no traje da cor do mundo”.
Miranda, um típico homem, desses fabricado pela futilidade da pós- modernidade, depara-se com a realidade do mundo ante a imagem da cruz estigmatizada do sofrimento de Cristo. Um entre tantos outros que espera pela vinda do filho de Deus como um bálsamo para as dores do mundo, encontra-se só e desprotegido, reagindo a tamanho desamparo com o cinismo, desinteresse e inércia, ante a realidade que o rodeia. Ou seria esse mesmo homem, o Miranda, uma criatura sensível demais para pertencer ao universo das misérias cotidianas que encontrou à perfeição dos reinos dos céus, sozinho e isolado, se refugiando na música harmoniosa de um piano? Essas e outras questões podem ser despertadas, a partir da leitura dessa narrativa, onde se questiona a possibilidade de sobrevivência dos chamados idealistas na sociedade presente. Não sem propósito seria, também, a discussão sobre o possível retorno do Cristo, verdade alimentada pela crença religiosa, nesse mundo de violência, injustiça e superficialidade.
São essas temáticas conflituosas, angustiantes e polêmicas que são abordadas nos dois contos iniciais do livro que parecem surgir como uma contraparte à proliferação dos títulos de auto-ajuda em sua tentativa de criação estilizada do sonho americano da eterna felicidade. Seguindo a linha dos bons ficcionista em suas abordagens psicológicas e sociais, o autor mistura fantasia e realidade, reproduzindo através de seus personagens e histórias, retratos em preto e branco das personalidades que brotam do estado inerente do caos humano. Toda essa caracterização atemporal da condição humana, acrescida dos dramas presente na depreciação dos valores da sociedade contemporânea estão presentes em “Memórias de um Herege Compulsivo”, num livro que reúne 30 contos do escritor baiano Elenilson Nascimento, publicado pela Editora Clube de Autores em setembro de 2009. (“MEMÓRIAS DE UM HEREGE COMPULSIVO”, de Elenilson Nascimento, 303 págs, Rio de Janeiro, 2009 – Clube dos Autores)
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